Haverá Vida para lá da Vida?

Num momento da minha vida em que tudo se questiona e nada do que era continua a ser, surge este espaço no qual tenciono partilhar com quem por aqui passar um pouco das minhas duvidas, dos meus pensamentos e ideias, esperando que os vossos comentários me ajudem a reencontrar o meu caminho e que os meus pensamentos vos ajudem no vosso... Espero vêr-vos por aqui, neste limbo virtual da vida...

30.10.04

Rapina

Eram 20:30 e o telefone nunca mais tocava. Deixou a cabeça escorregar entre as mãos, escondendo-a nos braços, de encontro ao peito.

Lá fora não chovia nem estava calor.

“Anda tudo indeciso” - pensou

Era o fim do dia e o sol ia-se apagando.
Por um canto da janela viu um raio desaparecer entre as nuvens. Agarrou a ponta mais comprida deste, deixando-se arrastar para o céu.

Lá do cimo olhou para a terra e não viu nada que lhe interessasse - uma cidade velha em decomposição rodeada de tantas outras tão mortas como ela, habitadas por destroços humanos.
Sentiu as costas rasgar, numa dor lancinante que a fez soltar o raio a que se agarrara.
Enquanto caia a dor aumentava, alastrando a todo o corpo. Sem conseguir aguentar mais abriu a boca para um grito de dor. Um guincho estridente foi tudo o que os seus ouvidos escutaram, ao mesmo tempo que tomava consciência da sua nova forma. Agitou as asas, afastando-se velozmente do chão que se aproximava para a receber.

Dirigiu-se ao topo de um prédio no centro da cidade e observou as pessoas que passavam.

A sua nova visão permitia-lhe ver as presas como se estas estivessem ao seu lado.
Atentamente, decidiu qual seria o seu jantar.
De um salto, mergulhou no coração da cidade, silenciosa e rápida.
Agarrou as costas da presa que escolhera, arrastando-a pelos ares para fora da cidade.
Uma rápida bicada foi o suficiente para lhe rasgar o pescoço. Foi depenicando a cabeça enquanto com as garras ia rasgando as roupas que cobriam o corpo.

Estava a comer-se a ela própria - pensou.

Mas com um rápido sacudir das penas afastou a ideia do pensamento. Era livre. Era diferente pois conseguira fazer o que nunca antes alguém conseguira. E agora podia acelerar o processo de decomposição. Sentia-se mais como um abutre que depenicasse um cadáver do que uma ave de rapina que comia carne ainda quente.
Durante dias vagueou pelos céus das cidades próximas, brincando ao gato e ao rato com os seres indefesos que lhe serviam de sustento.
Cedo descobriu que as armas que as suas presas usavam nada podiam contra ela, divertindo-se a vê-las correr em pânico de cada vez que fazia um voo rasante por entre os prédios.
A caça era toda a sua razão de viver; ansiava pelo momento em que iria sentir a carne a ser rasgada entre as suas garras, o sangue a escorrer pelo bico, o som de ossos a quebrar e gritos de pânico e dor insuportável entrelaçados.
Deliciava-se em fazer sofrer, ver as presas debaterem-se em agonia enquanto as esventrava.

Era uma predadora cem porcento eficiente: só não caçava o que não se mexia.
Em consciência é incorrecto chamar caça a um desporto de pura carnificina.
Encontrava-se completamente alheada da sua antiga humanidade ou, então, só agora é que exercia em pleno o que era ser-se humano... não era realmente algo em que pensasse.

Os arredores da cidade estavam pejados de corpos mutilados, trofeus de cães e gatos vadios, a início, agora disputados pelos animais selvagens das redondezas.
Pouco depois já não havia mais caça - os poucos seres que haviam sobrevivido iam definhando à medida que a comida escasseava.

Durante os dias seguintes caçar tornou-se um desafio - já se via obrigada a rondar os céus durante horas até que alguém saísse de um dos prédios.
Depois era a corrida por entre ruas abandonadas, voos picados que, regra geral, eram coroados com êxito.

Uma manhã - já à muito que perdera completa noção do tempo- viu-se surpreendida por um silêncio absoluto.
Nas ruas abandonadas não se via sequer as usuais ratazanas.
Dos prédios não saia o mais pequeno som.
Aguardou durante vários nascer-de-sol antes de se render à evidencia de que já não havia vivalma naquela cidade.

Distendeu as asas, fazendo estalar os ossos.
Com um elegante mergulho deixou-se cair em direcção à vastidão da planície. Contrariando a força da gravidade elevou-se em direcção ao Sol.

À medida que se aproximava do ocaso, o seu corpo começou a dissolver-se na luz, regressando ao seu criador.

Lá embaixo só a vida nos oceanos fervilhava.

7 Comments:

Blogger Conceição Paulino said...

Viva ;) UM belo texto literário é-nos aqui oferecido.Voltarei a relê-lo atentamente. Não é só uma ficção. É preciso desconstrui-lo para encontrar o seu verdadeiro sentido, o k nele é significante.Bjs doces e marinhos ;)

7:48 da tarde  
Blogger Clio said...

TMara - Os conteudos e interpretações são sempre pessoais... nem eu sei já bem o que senti no momento em que escrevi estas linhas.
Para cada um de nós o significado do que se lê é sempre pessoal... pode-se trabalhar no sentido de uma conclusão comum mas a interpretação inicial é sempre baseada naqueles aspectos do texto que nos dizem mais...
Fica à vontade para partilhar a tua interpretação connosco!

2:26 da tarde  
Blogger Clio said...

Pedro - Fico muito feliz de teres gostado... e obrigada pelo incentivo para escrever mais! bjocas

2:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

sem dúvida um texto perturbador... Uma narrativa do fim da humanidade um pouco estranha. Mas acima de tudo uma boa descrição, que a cada frase me levou a imaginar a cena. [][][][] http://oblogdorapaz.blogs.sapo.pt

5:45 da tarde  
Blogger Conceição Paulino said...

POIS! Qnd falo de desconstrução do texto é qq coisa já exterior a quem o escreve.Desde o mmt e, k se escreve algo deixa de ser nosso. Desde k se publica e dá a ler mtº mais, mas, p/ além disso, a escrita tem qq coisa de autónoma em relação a quem q escreve.Por vezes escreve-se por linhas k não imaginaramos.QQ interpretação parte dum texto, mas n/ procura descobrir os segredos ou intenções menos objectivadas do/a autor/a. Parte de símbolos e significados expressos k têm a ver com o universo de quem busca e k mtas vezes nem foram claros ou conscientes a quem o escreveu.Uma interpretação é sp exterior à intenção primeira da escrita, mas parte do k está impresso e dos nexos.
Bjs doces, aos molhinhos, para ires desfolhando ;)

8:57 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

gostei muito. mas confesso que me senti um pouco angustiada... acho que é um reflexão muito inteligente do actual estado do mundo. preocupa-me mas ao mesmo tempo acredito que podemos ter um papel importante no rumo das coisas.

12:27 da manhã  
Blogger Clio said...

Anónima - a ideia é mesmo criar reacções: a cada um a sua... E se te deixei a pensar, fico feliz com o objectivo atingido!

10:19 da manhã  

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