Sei que já estou em falta por tão longa ausência pelo que, para recomeçar devagarinho, aqui vai uma pequena estória que escrevi a título de brincadeira...
Haverá Vida para lá da Vida?
Num momento da minha vida em que tudo se questiona e nada do que era continua a ser, surge este espaço no qual tenciono partilhar com quem por aqui passar um pouco das minhas duvidas, dos meus pensamentos e ideias, esperando que os vossos comentários me ajudem a reencontrar o meu caminho e que os meus pensamentos vos ajudem no vosso... Espero vêr-vos por aqui, neste limbo virtual da vida...
24.3.05
Descendências
O vento, forte e abafado, bate contra as paredes da casa fazendo ruído suficiente para acordar quem lá dormisse. Se lá morasse alguém...
Abandonada há décadas por uma família abastada que não soubera o que fazer com o velho casarão após a morte do solteirão e excêntrico tio Aurélio, fora utilizada como residência por alguns sem abrigo até à altura em que todas as portas e janelas haviam sido definitivamente seladas com tijolos levantados às três pancadas.
Agora só o silêncio percorre as suas salas.
Ou assim parece. O gato Matias, bicho corpulento de luzidio pelo amarelo, anda de volta da varanda do primeiro andar: por algum lado há-de lá conseguir entrar...
Pequenos rasgos de luz penetram pelas frinchas dos tijolos mal acamados. Os raios parecem brincar com o pó que enche a casa, tecendo novos padrões por onde passam, criando intricadas danças com a poeira que rodopia pelo ar.
Um cheiro pungente enche a casa: um cheiro almiscarado a... ratos?
O gato Matias não tem a menor dúvida: ainda não conseguiu descortinar forma de entrar na casa mas que ali vive muito rato, isso ninguém lhe tira.
O dia já vai longo e o gato Matias decide desistir. Já está a ficar farto daquele exercício de frustração e sempre tem comida à espera em casa. Apenas gostaria de ter dado algum uso às suas garras...
Não faz ideia de que, por razões de antiguidade, teria ele mais direito a percorrer aqueles corredores do que as famílias de roedores que por lá se instalaram – e como o poderia saber?
Sua ascendente remota era, sem sombra de dúvidas, a gata Bichana, animal de pelo farto, amarelado, que habitara aquela casa com o tio Aurélio e com ele perseguira os ratos que por esses tempos se aventuravam entre aquelas paredes.
Passara horas sentada no terraço das traseiras da casa a gozar do sol e do calor ou a amamentar as várias ninhadas que fora tendo ao longo dos tempos, enquanto o velho Aurélio varria o dito terraço com uma sólida vassoura de cerdas de palha, várias vezes utilizada para esmagar esta ou aquela barata, em dias de maior sorte um ou outro rato.
Não era só para dar cor ao texto que há pouco se dizia que o tio Aurélio era excêntrico: o homem tinha, de facto algumas particularidades. A mais evidente, para quem ali entrasse no tempo em que ele lá morava e se dirigisse à zona da copa, seria a sua magnifica colecção de vassouras: nada destas vassouras de plástico que hoje se usa mas vassouras à antiga, de madeira, com cerdas de palha amarradas por cordel. Era o próprio quem as fazia e, por qualquer motivo, nunca as deitava fora. Bastaria trocas as cerdas e aproveitar os cabos mas ele, do que gostava mesmo, era de ir fazendo mais uma e mais uma.
Logo atrás da sua mania por vassouras só mesmo o seu grande ódio por ratos! A madame bichana não era a única gata com quem vivia: de tal forma odiava ratos que, ao contrário dos seus vizinhos que afogavam a prole dos seus felinos, o tio Aurélio ia alimentando e cuidando de toda aquela gataria até já não se saber mais de quem era a casa...
A noite desceu e o gato Matias foi à sua vida para outros quintais. Dentro da casa o ouvinte mais atento pode escutar os passos leves e apressados dos roedores que buscam comida para alimentar as suas crias. Estas, quase cegas, encolhem-se por entre as palhas quentes do que havia sido em tempos remotos um sem número de vassouras.