Haverá Vida para lá da Vida?

Num momento da minha vida em que tudo se questiona e nada do que era continua a ser, surge este espaço no qual tenciono partilhar com quem por aqui passar um pouco das minhas duvidas, dos meus pensamentos e ideias, esperando que os vossos comentários me ajudem a reencontrar o meu caminho e que os meus pensamentos vos ajudem no vosso... Espero vêr-vos por aqui, neste limbo virtual da vida...

17.11.04

Desencontros

Da primeira vez que a vi trazia uma blusa cingida ao corpo e uns jeans azuis, simples. Nos pés, uns ténis; o cabelo solto, à volta dos ombros.
Movia-se de forma insegura, como quando vamos num caminho de terra solta, com medo de escorregar em alguma pedra.
Olhava as pessoas por quem passava até ao momento em que davam por ela. Baixava então a vista para o chão ou para o relógio.
Sentou-se na mesa ao meu lado. Por companhia um livro de que nunca cheguei a saber o titulo.
Enquanto esperou o croissant e o sumo, fumou um cigarro e leu o que faltava ao livro (o serviço não era lento; o livro estava quase no fim).
A minha conta chegou. Descobri estar já atrasado para o emprego. Numa troca rápida de dinheiro com o empregado levantei-me da esplanada.
*
Dirigiu-se ao balcão naquele seu andar extremamente feminino e entregou-me o talão com o nome do livro que queria requisitar.
Cabelo apanhado num puxinho (como usam as bailarinas), vestido em tons pasteis que adivinhava as linhas do seu corpo.
Tinha um passo incerto, como se tivesse sempre medo, mas isso apenas lhe conferia uma fragilidade sensual, aumentando o seu carisma.
Chamava-se Mariana, trabalhava num escritório de uma firma de construção civil.
Vinha com frequência à biblioteca.
Entreguei-lhe o livro e afastou-se após um rápido “bom dia”.
*
Acabou o livro no momento em que apareceu o criado com o croissant e o sumo.
A seu lado alguém se levantou e afastou em direcção ao parque de estacionamento.
O livro terminara de uma forma brusca. Incompleto, aprofundara a sensação de vazio que ela esperara que fosse atenuada pela leitura.
Comeu rapidamente o croissant; transparecia o desconforto de se encontrar sozinha.
Nessa manhã dera parte de doente no escritório.
Levantou-se e dirigiu-se para a paragem do autocarro. Iria ao cinema.
No final da sessão sentiu uma pungente necessidade de companhia. A noite já se estendia em todas as direcções. O Carlos tinha ido para fora e só voltava para a semana.
Lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Deixou-se andar sem destino. Sem reparar no caminho foi ter à ponte.
Olhou as águas, as luzes das ruas reflectidas, o som dos carros que passavam como pano de fundo.
Descalçou-se, despiu os jeans e a blusa. As lágrimas escorriam-lhe de novo pela cara sem que o notasse. Um sofrimento tão intenso e interno, tão sem razão de ser, de existir.
Nua, sentou-se sobre o corrimão.
O escuro, o abismo, a obliteração - o retorno.
O fim absoluto e supremo. Sentia-se atraída, arrebatada.
- Carlos. Eu preciso de ti.
A ponte estava deserta. Pôs-se de pé sobre o corrimão, encostada a um dos pilares.
Queria sentir-se sugada pela não existência.
Deixou-se ir.
*
Vim passear o cão, o Jaime.
Todas as noites o mesmo caminho: saio de casa, viro à direita, seguimos até ao jardim - ele espalha o seu aroma em 15 ou 20 cantos diferentes - continuamos em direcção à ponte, e à saída da ponte viro à direita para entrar pela parte se cima da rua onde moro.
Tínhamos agora saído do jardim e o Jaime vinha com o focinho colado ao chão, quando pareceu ter encontrado qualquer coisa de mais curioso. Parou com o dito focinho enterrado num amontoado de roupas caídas no meio do passeio.
Olhei. Um par de jeans, uma blusa, uns ténis pretos. O soutien voava na estrada.
Não sei que impulso me fez olhar para o rio, mas fi-lo mesmo a tempo de ver um vulto ser engolido pelas águas.
Corri para a cabine telefónica no fim da ponte e chamei uma ambulância.
Foi a segunda vez que a vi.

5 Comments:

Blogger Conceição Paulino said...

B'DIA. UM DIA CHEIO DE :))
Magnífico texto.
Às vezes a vida doi assim, mas não há ninguém que mereça tal dor.
Flores para ti @-',--
@-',--

12:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

LI "DESENCONTROS".
GOSTEI. A PROSA É TENSA, OS AMBIENTES BEM DELINEADOS,A ATMOSFERA DE SOLIDÃO (SOLIDÕES)DESENHADA COM NITIDEZ. HÁ, PORVENTURA, UMA DEMASIADA CONTENSÃO QUE CREIO VIRÁ A SER ATENUADA EM TEXTOS FUTUROS, PORQUE A ESCRITA É SEMPRE UM EXERCÍCIO CONTINUADO.
PARABÉNS.
ANTÓNIO

12:26 da tarde  
Blogger Clio said...

Tmara - infelizmente não podemos escolher o grau de dor que nos é infligido pela vida ou por nós mesmos... mas que aquela é uma criaturinha muito negativista, lá isso... bjos

9:41 da tarde  
Blogger Clio said...

António - obrigada... mas tenho que confessar que este texto já estava na gaveta à muito tempo. Não sei se se fosse escrever hoje iria ser mínimamente parecido, quer para melhor como para pior. Tenho só que esperar que a idade, além de rugas, também traga alguma sabedoria! Bjinhos

9:44 da tarde  
Blogger Clio said...

Pedro: Obrigada... com comentários desses ainda me convences a tentar escrever algo a sério, mais do que as 3 páginas habituais.
Bjinhos ;)

9:45 da tarde  

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